sexta-feira, 30 de maio de 2008

Como progredir socialmente sem leitores críticos da realidade?


JC e-mail 3521, de 29 de Maio de 2008.

45% dos brasileiros dizem que não gostam de ler

Leitura foi 5ª opção citada (35%) sobre o que fazer no tempo livre; 77% opta pela TV. Sul é região onde mais se lê (média de 5,5 livros por pessoa), à frente do Sudeste (4,9), Centro-Oeste (4,5), Nordeste (4,2) e Norte (3,9)

Lucas Ferraz escreve para a “Folha de SP”:

No país de escritores como João Guimarães Rosa, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, 45% dos entrevistados na pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil" disseram não gostar de ler. O percentual, aplicado à população brasileira, corresponde a mais de 77 milhões de pessoas.

Segundo o balanço, realizado pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), a pedido do Instituto Pró-Livro, e divulgado ontem (28/5), o brasileiro lê, em média, 4,7 livros por ano, e compra ainda menos, média de 1,2 exemplar a cada 12 meses. Quando indagada sobre o que prefere fazer em seu tempo livre, a maioria da população opta pela televisão (77%) -a leitura foi a quinta opção citada pelos entrevistados, com 35%, atrás de hábitos como ouvir música e rádio e descansar.

Em um país que tem 18% de analfabetos, segundo dados de 2006 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi considerado como leitor quem leu pelo menos um livro durante os três meses anteriores à pesquisa, feita entre novembro e dezembro de 2007, equivalente a 55% dos entrevistados.

Entre os leitores que dedicam seu tempo livre para ler, 27% deles lêem revistas (leitura semanal) e 20%, jornais (leitura diária). Os livros são preferidos para leituras mensais -como afirmaram 14% dos entrevistados.

Por região

O Sul é a região onde mais se lê (média de 5,5 livros por pessoa), à frente do Sudeste (4,9 livros), Centro-Oeste (4,5 livros), Nordeste (4,2 livros) e Norte (3,9 livros). Em 2001, na primeira edição da pesquisa, a média de leitura da população era de 1,8 livro por ano, mas as metodologias utilizadas são diferentes.

Enquanto aquela ouviu pessoas com idade superior a 15 anos, a pesquisa divulgada ontem entrevistou crianças a partir dos cinco anos e analfabetos funcionais, em todos os Estados e no Distrito Federal. A margem de erro da pesquisa é de 1,4 ponto percentual.

Na opinião do escritor Luis Fernando Verissimo, o preço do livro é uma barreira contra novos leitores. "A maioria está mais preocupada em sobreviver, não tem como comprar livro", disse o escritor -o último da lista de 25 nomes mais admirados ("estou na zona de rebaixamento", brincou).

Galeno Amorim, coordenador da pesquisa, negou que o preço seja um "complicador" -o estudo contou com o apoio do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e da CBL (Câmara Brasileira do Livro).


Hábito

As professoras aposentadas Manoelina de Barros, 75, e Maria Helena Tosoni, 68, gostam de se encontrar em livrarias para comprar livros. Elas afirmam que só têm essa disponibilidade porque são aposentadas, e lamentam que a maioria dos professores leia pouco. Sobre o motivo, Tosoni é categórica: "Se o salário fosse maior, leríamos mais".

A metroviária Telma Piccirillo, 45, diz que nunca obrigou seus filhos Victor, 10, e Taynã, 15, a ler, mas sempre cultivou o hábito: "Quando não sabiam ler, eu lia para eles". Ela acredita que lê mais que seus colegas: "Eles são meio preguiçosos".
(Folha de SP, 29/5)

Por quê será que trabalhar em escola não agrada?


Extraídos de: http://www.jornaldaciencia.org.br
JC e-mail 3521, de 29 de Maio de 2008.

83% dos alunos têm professor insatisfeito, afirma a Unesco

Entre 11 países emergentes, apenas docentes uruguaios estão mais insatisfeitos com os salários, segundo pesquisa. O total de estudantes cujos professores trabalham em mais de uma escola chega a 29% no Brasil, o maior entre todos os países analisados

Antônio Gois escreve para a “Folha de SP”:

Os professores brasileiros, com exceção apenas de seus colegas uruguaios, são os mais insatisfeitos com seus salários, segundo um relatório divulgado ontem (28/5) pela Unesco, no comparativo entre 11 países em desenvolvimento. No estudo, 83% dos alunos do ensino primário (equivalente, no caso brasileiro, aos quatro primeiros anos do ensino fundamental) estão em classes cujos docentes se declararam insatisfeitos com os salários.

O relatório também mostra, como já evidenciado em outros estudos da Unesco, que as taxas de repetência no ensino primário no Brasil destoam, e muito, das de outros países. No Brasil, a repetência chega a 19% dos alunos no ensino primário, mais que o dobro da verificada no segundo país com maior percentual, o Peru, com 8,8%.

O estudo da Unesco, intitulado "Um Olhar para o Interior das Escolas Primárias", faz parte do programa WEI (sigla, em inglês, de Indicadores Mundiais de Educação), que monitora a educação em países em desenvolvimento.

Duplo emprego

Sobre o alto grau de insatisfação dos professores brasileiros com seus salários, o representante da Unesco no Brasil, Vincent Defourny, destaca outro dado do relatório, que mostra que o percentual de alunos cujos professores trabalham em mais de uma escola chega a 29% no Brasil, o maior entre todos os países analisados.

Não por acaso, os outros dois países com maiores percentuais nesse quesito são Argentina e Uruguai, onde igualmente o nível de insatisfação com o salário chega a mais de 80%. "Todo mundo que trabalha sabe que uma dupla jornada afeta o desempenho. Isso tem certamente impacto em sala de aula", diz Defourny.

A professora Sandra Aparecida Martins Ferreira, 38, concorda. Ela leciona tanto na rede estadual quanto municipal na zona leste de São Paulo. As nove horas e meia de trabalho diárias lhe rendem ao final do mês R$ 2.200.

"É muito pouco, considerando o desgaste que temos. Os alunos vêm cada vez mais com problemas familiares e nós não conseguimos desenvolver o que desejamos. É frustrante", diz Sandra, que dá aulas para estudantes de 1ª a 4ª séries.

Infra-estrutura

Na maioria das situações analisadas pelo estudo -como a infra-estrutura das escolas ou as condições de oferta do ensino- o Brasil se encontra perto da média dos países analisados -não foram analisados dados de países desenvolvidos. Os brasileiros, por exemplo, não se mostraram tão insatisfeitos em relação ao número de alunos por turma, a participação dos pais de alunos na escola ou a oferta de material didático.

No caso do número de alunos por turma, por exemplo, 34% estudam em classes cujos professores demonstraram algum grau de insatisfação com a questão. A média no ensino primário brasileiro é de 27 crianças por sala de aula. A maior relação foi encontrada na Índia (51 por sala), e a menor, na Malásia (18 por sala).

Investimento

Além de ter professores insatisfeitos com seus salários, o Brasil também não é o país que mais investe no ensino. O gasto médio brasileiro por aluno do ensino primário, de US$ 1.159, é bem superior ao de países que estão no fim da fila, como Peru (US$ 479) ou Índia (US$ 484), mas fica bem abaixo do Chile (US$ 2.120), segundo o relatório da Unesco.

Na comparação dos valores em dólares, a entidade leva em conta o custo de vida em cada um dos 11 países em desenvolvimento incluídos no estudo. Para Vincent Defourny, representante da Unesco no país, a distância do Brasil em relação ao Chile mostra que seria possível investir mais.

Ele destaca que o relatório também mostra que, enquanto no Brasil a média de tempo de um aluno em sala de aula é de 800 horas por ano, no Chile ela chega a 1.200 horas. "Uma educação de melhor qualidade é também uma educação em que o aluno passa mais tempo em sala. Isso certamente tem um custo, mas que se reflete na qualidade", afirma Defourny.

O representante da Unesco afirma ainda que um ponto importante do relatório e comum a todos os países analisados é o alto grau de desigualdade nas condições de acesso à educação. "A escola não está funcionando como um corretor das desigualdades nesses países."

Família

O estudo da Unesco também analisou algumas características familiares que normalmente interferem de forma negativa no desempenho dos estudantes. Entre os países analisados, o Brasil aparece com percentuais acima da média no caso de alunos que vivem em casas onde há menos de 25 livros disponíveis e no de famílias monoparentais, ou seja, em que há só a mãe ou o pai.
(Folha de SP, 29/5)

sábado, 24 de maio de 2008

Dilemas na Educação Física Escolar



Pois é galera, vira e mexe, representantes dos combalidos discursos reducionistas reaparecem com argumentos aparentemente promissores, em que medições e cálculos servem de fundamento para estabeler padrões de desenvolvimento humano adaptados aos interesses de uma fração da sociedade atual, cujos valores capitalistas só consideram aquilo que tem base no princípio da utilidade imediata, deixando de lado outras questões relacionadas a vida cultural que não rendem lucro.

Nesta perspectiva, tudo deve sucumbir à idéia da rentabilidade instantânea, da máxima eficiência nas ações e eficácia na maximização da exploração da matéria-prima. Tanto faz animais, plantas, minerais, águas, terras, e, não menos importante, pessoas que são tratadas como coisas! E como seres coisificados podem ser excluídos, interditados, cortados, modificados, reestruturados, e, porque não, descartados, quando atrapalham o progresso do capital. Basta observar nas metrópoles os miseráveis em condições subumanas, famintos, degradados em sua dignidade, muitos prostituídos, drogados, escravizados, avolumados em prisões e/ou campos de trabalho forçados. Seja em nosso país, na América Latina, na Ásia ou na África, as informações são inquietantes, que somados ao processo de exploração capitalista dos recursos naturais, culminam em uma espécie de barbárie planetária. Mas a questão central é se precisamos continuar assumindo um comportamento predatório do mesmo modo que as gerações anteriores? Se de fato estamos avançando em termos de progresso humano, será que temos condições de refletir nossas ações e fazer um balanço das atitudes tomadas no conjunto da sociedade e, quem sabe, propor mudanças na direção de um equilíbrio entre capital e trabalho (produção e consumo)?

Algumas das propostas "bem intencionadas" parecem avançar pouco no sentido de uma melhor compreensão do corpo como resultado das múltiplas expressões manifestadas ao longo da história humana. Propor movimentos "estereotipados" pode comprometer a condição física e o significado por parte daqueles que ainda não descobriram as possibilidades de usufruir de seu próprio corpo e o quanto poderiam ser beneficiados com esse "saber de si". A diminuição do repertório de movimentos nas aulas de Educação Física Escolar resulta em perda para os alunos, como também para os próprios professores de EF quando permanecem restritos a poucas opções pedagógicas. Aceitar a substituição passiva do "brincar" para o "treinar", por vezes precocemente, é tão comprometedor para o desenvovimento físico, psiquico, emocional e social quanto deixar de debater com os estudantes os desígnios de um mundo que preconiza a "diversão" e o "prazer" instantâneo como motivo para a vida adulta. Seria, no mínimo, um absurdo deixar de perceber que o entretenimento global tem tirado vantagem desse contingente de futuros atletas que, em sua imensa maioria, terminam sendo descartados e abandonados à própria sorte. Não se trata aqui de recusar as oportunidades que o esporte ou qualquer outra manifestação corporal oferecem e, sim, ponderar a respeito daquilo que está sendo feito com os alunos nas escolas. Incentivar os cuidados com a saúde por meio da prática de atividades físicas, esportivas ou não, acaba sendo o recurso mais utilizado pelos professores nas aulas de Educação Física Escolar, sem que isso seja visto em panorama. Entretanto, não convém esquecer que a idéia de atividade física requer de todos nós, a consciência de que existem muitos trabalhos humanos injustos.

Para exemplificar, cito o corte de cana-de-açúcar, no qual um trabalhador médio deve produzir 10 toneladas cortadas em um dia de trabalho. Para atingir a meta estabelecida, o trabalhador se vê obrigado a desferir milhares de golpes de facão para receber cerca de R$ 2,50 por tonelada cortada. Alguns números ilustram o que ocorre. Para cada dez toneladas, o cortador deve dar cerca de 72 mil golpes de facão, fazer 36 mil flexões de perna, chega a perder cerca de 10 litros de água por dia e caminha até 10 quilômetros diários enquanto realiza seu trabalho. Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30 cm, se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima, juntar os fardos de 15 kg nos braços a uma distância de 3 metros, repetindo esse movimento mais de 800 vezes. Entre os problemas de saúde, se destacam má atividade dos rins, desgaste da coluna vertebral, tendinite nos braços e mãos em razão dos esforços repetitivos, doenças nas vias respiratórias causadas pela fuligem da cana, deformações nos pés em razão do uso dos "sapatões" e encurtamento das cordas vocais devido à postura curvada do pescoço durante o trabalho.

“Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de cãibras. As cãibras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso. Para conter as cãibras e a desidratação, algumas usinas já levam para o campo e ministram aos trabalhadores soro fisiológico e, em alguns casos suplementos energéticos, para reposição de sais minerais.”
Francisco Alves. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, 2006, vol.15, n. 3, ISSN 0104-1290. (In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 12902006000300008&script=sci_arttext&tlng=pt http://www.cpt.org.br/?system=news&action=read&id=316&eid=129


Esses cálculos estatísticos representam dados intrigantes, passíveis de desconfiança, já que tais trabalhadores chegam a morrer por excesso de trabalho, e mesmo aqueles que agüentam, ao que tudo indica, diminuem substancialmente a perspectiva de vida útil abaixo do 15 anos suportando esse suplício.

Esse é apenas um caso notório de atividade física exaustiva dentre muitas outras que poderiam ser debatidas (extração de palma, fumo, estivadores, garis, lixeiros, etc). Bom, a pergunta não respondida é se estamos falando de atividades físicas das quais a Educação Física Escolar deve se responsabilizar ou não? Se não seria o caso de restringir o campo de atuação da EF a somente alguns segmentos do trabalho humano, preferencialmente aqueles, aparentemente sem contradição, em que não se requer grandes análises ou reflexões?

Retomando a discussão sobre a Educação Física Escolar, embora já exista uma quantidade razoável de livros e artigos publicados nos últimos anos e suas possibilidades e seus problemas sejam cada vez mais conhecidos, as dificuldades encontradas na realidade escolar não são simples. Às vezes são até distintas umas das outras, pois cada escola está inserida num contexto extremamente complexo. Por mais boa vontade dos envolvidos, é preciso reconhecer que não existem respostas conclusivas, sob as quais não restariam dúvidas quando aplicadas a todas as escolas brasileiras de forma mágica. Existe, claro, problemas comuns a maioria dos professores e escolas, mas ainda que houvesse uma solução milagrosa enfrentaríamos dificuldades para lidar com aspectos que interferem diretamente na qualidade das aulas ministradas.

Penso que, talvez, as propostas que buscam soluções necessitem de um entendimento mais profundo sobre o que está acontecendo nas escolas atualmente. Para além das questões específicas da área no currículo escolar, muitas outras questões sofrem interferência do ambiente social, diante da desigualdade de oportunidades temas relacionados à violência e às drogas no interior da escola e em seu entorno podem tornar o trabalho pedagógico do professor inviável. Diante de compreensões estreitas, determinadas propostas de atividades pedagógicas acabam por produzir tarefas desprovidas de sentido, tanto para o professor quanto para o aluno.

Portanto, a atuação docente descomprometida com os alunos que estão diante de falta de um projeto de vida, sem melhores perspectivas futuras, num cenário de desemprego e corrupção generalizados, com prognósticos alarmantes para o meio-ambiente, e, carência de exemplos de pessoas com comportamento ético, resultam em dificuldades extras ao lidar com o ensino formal. Enfim, as conseqüências desse processo estão sendo diagnosticadas aos poucos, mas já é possível apontar que isso tem impacto no baixo estímulo dos professores quando estão em seu trabalho diário, com turmas numerosas, baixos salários, psicologicamente em ruína, entre outros. É possível que a "síndrome de burnout" seja algo indicativo um problema mais grave ainda!

Os obstáculos a serem superados são enormes, pois tanto os cursos de graduação em Educação Física, quanto alunos e professores estão diante de um impasse na formação humana. É sabido que tamanhas dificuldades poderiam barrar o processo de buscar alternativas e, evidentemente, minhas palavras não encerram o assunto, mas ao contrário, só me dispus a escrever este texto com o objetivo de iniciar um debate. E para não me estender mais, termino com a sugestão de articular duas idéias:

- primeiro: viabilizar a formação pedagógica dos professores de Educação Física com excelente nível (domínio do conhecimento técnico em bases científicas; compromisso nas questões políticas para a transformação da sociedade; e responsabilidade social por todos aqueles que estão ao nosso alcance).

- segundo, é o engajamento nas lutas por melhores condições de trabalho (salários, materiais, infra-estrutura, cursos de capacitação, desenvolvimento de pesquisas pelos próprios professores das escolas e não mais subservientes a outras instituições). Ou seja, conjugar as ações com todos aqueles que estão resistindo às investidas dos grupos com interesses mercadológicos que visam tão somente a exploração da mão-de-obra do professor, precarizando as condições de trabalho dos docentes e danificando o processo de aprendizagem dos alunos.

A expectativa delineada aqui para a Educação Física Escolar esbarra nas divergências sobre o modo de encaminhar tais soluções. O conflito é aberto e as estratégias de luta nem sempre francas.
Por enquanto é isso, abração.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Enfim, algo sensato sobre a violencia infantil!



Estadão, ALIÁS
27 de abril de 2008
FONTE: http://www.estado.com.br/suplementos/ali/2008/04/27/ali-1.93.19.20080427.13.1.xml

CASO ISABELLA


Pais sem rumo, crianças sofridas
Filhos não têm como se defender da displicência, dos excessos ou da irresponsabilidade dos pais
Maria Rita Kehl*

No momento em que escrevo este artigo ainda não há conclusões definitivas sobre o assassinato da menina Isabella. Mas desde o primeiro dia a sociedade já havia decidido condenar o casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Aos poucos a indignação popular aumentou, orquestrada inescrupulosamente pelos telejornais em disputa por audiência, até se transformar em pura sanha linchadora.
Não me disponho a tentar explicar o que teria levado um pai e uma madrasta a assassinar, ainda que acidentalmente, uma criança, e depois livrar-se do corpo de maneira tão brutal. Fora da clínica e da transferência, o psicanalista é tão leigo quanto qualquer pessoa ante os sintomas e surtos alheios. O que a experiência clínica oferece são algumas chaves para a compreensão das condições subjetivas presentes em uma sociedade, que favorecem certas manifestações aberrantes, violentas e aparentemente incompreensíveis.
Como entender essa torcida em massa para que o pai e a madrasta de Isabella sejam os culpados? Em primeiro lugar, penso que diante dos crimes domésticos as pessoas se sentem menos inseguras do que diante do fantasma da violência social generalizada que assola o país. "Se o crime foi cometido em família, isso é lá problema deles", pensamos, na esperança de que em nossa família essas coisas não aconteçam. Em segundo lugar, a família de Isabella pertence à mesma classe média dos consumidores de jornais e revistas, público alvo dos anunciantes da televisão. No dia 20 de abril, um menino negro de 11 anos foi morto com um tiro na cabeça na favela da Vila União, em São Paulo. Até agora, não vi a imprensa acompanhar a apuração do assassinato do pequeno Jefferson Alves, considerado desinteressante pela sociedade.
É evidente que a figura mitológica da madrasta excita a imaginação popular. A personagem da madrasta má, nas histórias infantis, encobre o lado sombrio da mãe. É ela quem encarna o egoísmo, a rivalidade, a crueldade ou o descaso para com o sofrimento das crianças, de modo a manter a idealização da maternidade biológica e conservar a santa mãe em seu pedestal. No entanto, qualquer psicanalista sabe o quanto as mães são capazes de abusar de seus filhos, rivalizar com suas filhas, violentar a dignidade deles, desrespeitar seus direitos.
O colunista da Folha de S. Paulo Contardo Calligaris fez uma análise interessante sobre o ciúme que algumas madrastas sentem de suas enteadas, disputando com elas o lugar de filhas de seus companheiros. Vale lembrar que a presença do (a) enteado (a) também pode reavivar os ciúmes da madrasta em relação à mulher que a precedeu. Mas nem todas as madrastas odeiam seus enteados. Conheço casos, em meu próprio consultório, em que a presença e a intervenção de madrastas generosas e sensíveis praticamente salvou a infância de filhos maltratados ou abandonados por mães imaturas, que se vingavam do ex-marido maltratando os filhos dele. Evito embarcar em uma defesa conservadora da família "de sangue" em detrimento de outras configurações familiares.
Os crimes domésticos colocam em evidência o desamparo infantil. As crianças não têm como se defender da displicência e da irresponsabilidade dos pais, nem dos excessos de amor, de sensualidade, de ira, de gozo: pais, mães, padrastos, madrastas, avôs e avós abusam de várias maneiras, "por amor", de crianças indefesas. Neste sentido, para a criança, a família não é um ambiente tão seguro quanto se imagina. Pesquisa da Unicef sobre a violência doméstica no Brasil revela que 44,3% dos homicídios de crianças ocorrem dentro de casa, sendo 34,4% deles cometidos por parentes das vítimas. Sem contar os casos de abuso sexual, que ocupam o primeiro lugar na lista das formas de violência familiar.
É evidente que existem famílias tranqüilas, pais e mães equilibrados e protetores. Mas a família moderna, fechada sobre si mesma, toda voltada para a produção de bem-estar, fundada nas formas mais egoístas de amor, é um canteiro propício, no mínimo, à violência psicológica. Os filhos frustram as expectativas dos pais, o amor vira moeda de barganha e chantagem mútua, a esperança de entendimento de parte a parte é freqüentemente obstruída pela culpa que cada um sente por não amar o outro tanto quanto devia.
Apesar disso, não existe nenhuma outra instituição que a substitua. Desejamos formar família, viver em família, criar condições de convívio protetoras, agradáveis. Mas é bom lembrar que se a família, em seus moldes tradicionais, fosse um mar de rosas, Freud não teria criado a psicanálise.
Se a criança é desamparada frente aos que cuidam dela, os adultos de hoje também se sentem desamparados no exercício de suas funções. A vida contemporânea está tão privatizada, tão indiferente a valores ligados ao bem comum, a sociedade tornou-se tão narcisista e infantilizada, que o bem-estar das crianças se tornou praticamente o único ideal dos adultos. Ser "bom pai" tornou-se a razão de viver de adultos que perderam as referências para saber tanto o que é ser "bom" quanto o que é ser "pai" (ou "mãe"). Se os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm mais nada a lhes transmitir a não ser "seja feliz" - isto, numa sociedade em que felicidade se mede pela capacidade de consumo e diversão.
O desamparo do adulto diante das exigências dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar "tudo de bom e de melhor", tem resultados patéticos ou, no pior dos casos, trágicos. Algumas crianças, hiperestimuladas e excitadas, ficam cada vez mais insatisfeitas e agressivas enquanto os pais, incapazes de estabelecer limites para a farra que eles mesmos prometeram, vivem exasperados, culpados, impotentes - e às vezes, tão fora de controle quanto os pequenos. Um adulto que se vê incapaz de educar uma criança é capaz de confundir autoridade com violência, poder simbólico com coerção física.
Vez por outra, um desses pais incapazes de colocar limites em seus filhos também corre o risco de perder os próprios limites.

* Maria Rita Kehl, psicanalista, escreveu Sobre Ética e Psicanálise (Companhia das Letras) e Ressentimento (Casa do Psicólogo), entre outros.

São essas as novas versões do trabalho do século XXI?



Folha de São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2008

O que temos para comemorar?

RICARDO ANTUNES

Vivemos uma explosão de denúncias sobre o aviltamento do trabalho. A cada dia vemos mais exemplos de trabalho escravo no campo, nos rincões do latifúndio. No agronegócio do açúcar, cortar mais de dez toneladas de cana por dia é a média por baixo, "low profile".
No final do ano passado, esta Folha descreveu a degradação do trabalho imigrante, especialmente boliviano, nas empresas de confecção em São Paulo. Jornadas de até 17 horas diárias em troca de casa e comida. Trabalho imigrante no limite da condição degradante.
Mas o espetáculo é multifacético e se esparrama por todas as partes: "chicanos" nos EUA, decasséguis no Japão, "gastarbeiters" na Alemanha, "lavoro nero" na Itália, "brasiguaios" no Paraguai -a lista não tem fim.
Sem falar nos desempregados do Leste Europeu que invadem o "pequeno canto do mundo" ocidental em busca dos restos do labor.
Se nos inícios do século 20 os povos do Norte migraram em massa para o Sul, encontrando acolhida, agora presenciamos o exato inverso, pois o fluxo migracional mudou de direção. Os deserdados do Sul tentam furar os bloqueios do Norte, cujo exemplo mais abjeto é o muro da vergonha que separa os EUA do México.
Ou, mais sutil, mas também cruel, a barreira das polícias alfandegárias nos aeroportos do chamado "mundo civilizado", obstando a entrada dos "bárbaros" do fim do mundo. O exemplo da Espanha contra brasileiros é a mais recente expressão fenomênica do problema e fala por si só.
Mas há uma autêntica conquista da chamada globalização: enquanto os capitais migram com velocidade mais ágil que a dos foguetes, o trabalho deve mover-se no passo das tartarugas.
Capitais transnacionais livres e trabalhadores nacionais cativos. Num mundo cada vez mais maquinal, informacional e digital, presenciamos também a explosão do "cybertariado" (Ursula Huws), trabalhador qualificado da era da cibernética que vivencia as condições do velho proletariado. A informalização, dada pela perda de liames contratuais de trabalho, vem aumentando em escala global, num contexto de ampliação de todas as formas de terceirização, gerando as mais distintas modalidades de trabalho precário, que se desenvolvem com a chamada polivalência da era flexível.
No Japão, jovens operários migram em busca de trabalho nas cidades e dormem em cápsulas de vidro, do tamanho de um caixão. São os operários encapsulados. Do outro lado do mundo, na nossa América Latina, encontramos trabalhadoras domésticas (mulheres e crianças) que atingem a jornada semanal de 90 horas de trabalho, com um dia de folga ao mês (Mike Davis), numa era em que poderíamos trabalhar dez vezes menos, se a lógica predominante não fosse tão destrutiva para a humanidade que depende de seu trabalho para sobreviver.
São essas algumas cenas do trabalho hoje. E ninguém poderá buscar um emprego, atualmente, se não demonstrar que realiza "trabalhos voluntários". É curioso: para conseguir emprego, são "obrigados" a realizar trabalhos "voluntários".
E isso sem falar na explosão do estagiário, candidato fresquinho a roubar um trabalho efetivo com remuneração de escravo. Ou nas tantas manifestações de desigualdade de gênero, em que as mulheres trabalham mais, com menos direitos e reduzida remuneração. Sem falar das diferenciações étnicas e raciais.
Quero terminar indicando só mais um exemplo de trabalho degradado: a crescente inclusão de crianças no mercado de trabalho global, nos países latino-americanos, asiáticos, africanos, bem como nos países centrais, como EUA, Inglaterra, Itália, Japão, sem falar na China, Índia etc.
Não importa que o trabalho adulto se torne supérfluo e que muitos milhões de homens e mulheres em idade de trabalho vivenciem o desemprego estrutural. Mas os meninos e meninas devem, desde muito cedo, fazer parte do ciclo produtivo: seu corpo brincante transfigura-se muito precocemente em corpo produtivo para o capital (Maurício da Silva).
Na produção de sisal, na indústria de calçados e confecções, no cultivo de algodão e cana, nas pedreiras, carvoarias e olarias, no trabalho doméstico, são inúmeros os espaços em que o trabalho infantil valoriza o capital.
Na indústria de tapeçaria da Índia, lembra Mike Davis, as crianças trabalham de cócoras em jornadas que chegam a 20 horas por dia. E na indústria do vidro, trabalham ao lado dos tanques com temperatura próxima de 1.800 graus centígrados ("The State of the World's Children - 1997", Unicef). Seriam, então, esses exemplos excrescências dentro de uma ordem societal preservadora do trabalho?


--------------------------------------------------------------------------------
RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 54, é professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Trabalho".