sábado, 24 de maio de 2008

Dilemas na Educação Física Escolar



Pois é galera, vira e mexe, representantes dos combalidos discursos reducionistas reaparecem com argumentos aparentemente promissores, em que medições e cálculos servem de fundamento para estabeler padrões de desenvolvimento humano adaptados aos interesses de uma fração da sociedade atual, cujos valores capitalistas só consideram aquilo que tem base no princípio da utilidade imediata, deixando de lado outras questões relacionadas a vida cultural que não rendem lucro.

Nesta perspectiva, tudo deve sucumbir à idéia da rentabilidade instantânea, da máxima eficiência nas ações e eficácia na maximização da exploração da matéria-prima. Tanto faz animais, plantas, minerais, águas, terras, e, não menos importante, pessoas que são tratadas como coisas! E como seres coisificados podem ser excluídos, interditados, cortados, modificados, reestruturados, e, porque não, descartados, quando atrapalham o progresso do capital. Basta observar nas metrópoles os miseráveis em condições subumanas, famintos, degradados em sua dignidade, muitos prostituídos, drogados, escravizados, avolumados em prisões e/ou campos de trabalho forçados. Seja em nosso país, na América Latina, na Ásia ou na África, as informações são inquietantes, que somados ao processo de exploração capitalista dos recursos naturais, culminam em uma espécie de barbárie planetária. Mas a questão central é se precisamos continuar assumindo um comportamento predatório do mesmo modo que as gerações anteriores? Se de fato estamos avançando em termos de progresso humano, será que temos condições de refletir nossas ações e fazer um balanço das atitudes tomadas no conjunto da sociedade e, quem sabe, propor mudanças na direção de um equilíbrio entre capital e trabalho (produção e consumo)?

Algumas das propostas "bem intencionadas" parecem avançar pouco no sentido de uma melhor compreensão do corpo como resultado das múltiplas expressões manifestadas ao longo da história humana. Propor movimentos "estereotipados" pode comprometer a condição física e o significado por parte daqueles que ainda não descobriram as possibilidades de usufruir de seu próprio corpo e o quanto poderiam ser beneficiados com esse "saber de si". A diminuição do repertório de movimentos nas aulas de Educação Física Escolar resulta em perda para os alunos, como também para os próprios professores de EF quando permanecem restritos a poucas opções pedagógicas. Aceitar a substituição passiva do "brincar" para o "treinar", por vezes precocemente, é tão comprometedor para o desenvovimento físico, psiquico, emocional e social quanto deixar de debater com os estudantes os desígnios de um mundo que preconiza a "diversão" e o "prazer" instantâneo como motivo para a vida adulta. Seria, no mínimo, um absurdo deixar de perceber que o entretenimento global tem tirado vantagem desse contingente de futuros atletas que, em sua imensa maioria, terminam sendo descartados e abandonados à própria sorte. Não se trata aqui de recusar as oportunidades que o esporte ou qualquer outra manifestação corporal oferecem e, sim, ponderar a respeito daquilo que está sendo feito com os alunos nas escolas. Incentivar os cuidados com a saúde por meio da prática de atividades físicas, esportivas ou não, acaba sendo o recurso mais utilizado pelos professores nas aulas de Educação Física Escolar, sem que isso seja visto em panorama. Entretanto, não convém esquecer que a idéia de atividade física requer de todos nós, a consciência de que existem muitos trabalhos humanos injustos.

Para exemplificar, cito o corte de cana-de-açúcar, no qual um trabalhador médio deve produzir 10 toneladas cortadas em um dia de trabalho. Para atingir a meta estabelecida, o trabalhador se vê obrigado a desferir milhares de golpes de facão para receber cerca de R$ 2,50 por tonelada cortada. Alguns números ilustram o que ocorre. Para cada dez toneladas, o cortador deve dar cerca de 72 mil golpes de facão, fazer 36 mil flexões de perna, chega a perder cerca de 10 litros de água por dia e caminha até 10 quilômetros diários enquanto realiza seu trabalho. Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30 cm, se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima, juntar os fardos de 15 kg nos braços a uma distância de 3 metros, repetindo esse movimento mais de 800 vezes. Entre os problemas de saúde, se destacam má atividade dos rins, desgaste da coluna vertebral, tendinite nos braços e mãos em razão dos esforços repetitivos, doenças nas vias respiratórias causadas pela fuligem da cana, deformações nos pés em razão do uso dos "sapatões" e encurtamento das cordas vocais devido à postura curvada do pescoço durante o trabalho.

“Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de cãibras. As cãibras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso. Para conter as cãibras e a desidratação, algumas usinas já levam para o campo e ministram aos trabalhadores soro fisiológico e, em alguns casos suplementos energéticos, para reposição de sais minerais.”
Francisco Alves. Por que morrem os cortadores de cana? Saúde e Sociedade, 2006, vol.15, n. 3, ISSN 0104-1290. (In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 12902006000300008&script=sci_arttext&tlng=pt http://www.cpt.org.br/?system=news&action=read&id=316&eid=129


Esses cálculos estatísticos representam dados intrigantes, passíveis de desconfiança, já que tais trabalhadores chegam a morrer por excesso de trabalho, e mesmo aqueles que agüentam, ao que tudo indica, diminuem substancialmente a perspectiva de vida útil abaixo do 15 anos suportando esse suplício.

Esse é apenas um caso notório de atividade física exaustiva dentre muitas outras que poderiam ser debatidas (extração de palma, fumo, estivadores, garis, lixeiros, etc). Bom, a pergunta não respondida é se estamos falando de atividades físicas das quais a Educação Física Escolar deve se responsabilizar ou não? Se não seria o caso de restringir o campo de atuação da EF a somente alguns segmentos do trabalho humano, preferencialmente aqueles, aparentemente sem contradição, em que não se requer grandes análises ou reflexões?

Retomando a discussão sobre a Educação Física Escolar, embora já exista uma quantidade razoável de livros e artigos publicados nos últimos anos e suas possibilidades e seus problemas sejam cada vez mais conhecidos, as dificuldades encontradas na realidade escolar não são simples. Às vezes são até distintas umas das outras, pois cada escola está inserida num contexto extremamente complexo. Por mais boa vontade dos envolvidos, é preciso reconhecer que não existem respostas conclusivas, sob as quais não restariam dúvidas quando aplicadas a todas as escolas brasileiras de forma mágica. Existe, claro, problemas comuns a maioria dos professores e escolas, mas ainda que houvesse uma solução milagrosa enfrentaríamos dificuldades para lidar com aspectos que interferem diretamente na qualidade das aulas ministradas.

Penso que, talvez, as propostas que buscam soluções necessitem de um entendimento mais profundo sobre o que está acontecendo nas escolas atualmente. Para além das questões específicas da área no currículo escolar, muitas outras questões sofrem interferência do ambiente social, diante da desigualdade de oportunidades temas relacionados à violência e às drogas no interior da escola e em seu entorno podem tornar o trabalho pedagógico do professor inviável. Diante de compreensões estreitas, determinadas propostas de atividades pedagógicas acabam por produzir tarefas desprovidas de sentido, tanto para o professor quanto para o aluno.

Portanto, a atuação docente descomprometida com os alunos que estão diante de falta de um projeto de vida, sem melhores perspectivas futuras, num cenário de desemprego e corrupção generalizados, com prognósticos alarmantes para o meio-ambiente, e, carência de exemplos de pessoas com comportamento ético, resultam em dificuldades extras ao lidar com o ensino formal. Enfim, as conseqüências desse processo estão sendo diagnosticadas aos poucos, mas já é possível apontar que isso tem impacto no baixo estímulo dos professores quando estão em seu trabalho diário, com turmas numerosas, baixos salários, psicologicamente em ruína, entre outros. É possível que a "síndrome de burnout" seja algo indicativo um problema mais grave ainda!

Os obstáculos a serem superados são enormes, pois tanto os cursos de graduação em Educação Física, quanto alunos e professores estão diante de um impasse na formação humana. É sabido que tamanhas dificuldades poderiam barrar o processo de buscar alternativas e, evidentemente, minhas palavras não encerram o assunto, mas ao contrário, só me dispus a escrever este texto com o objetivo de iniciar um debate. E para não me estender mais, termino com a sugestão de articular duas idéias:

- primeiro: viabilizar a formação pedagógica dos professores de Educação Física com excelente nível (domínio do conhecimento técnico em bases científicas; compromisso nas questões políticas para a transformação da sociedade; e responsabilidade social por todos aqueles que estão ao nosso alcance).

- segundo, é o engajamento nas lutas por melhores condições de trabalho (salários, materiais, infra-estrutura, cursos de capacitação, desenvolvimento de pesquisas pelos próprios professores das escolas e não mais subservientes a outras instituições). Ou seja, conjugar as ações com todos aqueles que estão resistindo às investidas dos grupos com interesses mercadológicos que visam tão somente a exploração da mão-de-obra do professor, precarizando as condições de trabalho dos docentes e danificando o processo de aprendizagem dos alunos.

A expectativa delineada aqui para a Educação Física Escolar esbarra nas divergências sobre o modo de encaminhar tais soluções. O conflito é aberto e as estratégias de luta nem sempre francas.
Por enquanto é isso, abração.

2 comentários:

Anônimo disse...

A Educação Física por ser uma área nova e ainda segundo seus estudiosos/pesquisadores não possuir uma "identidade claramente definida" enfrenta problemas relacionados ao conteúdo que deve ser trabalhado, à má formação de professores, ao preconceito que sofre por outras áreas, dentre outras. Embora o movimento exista desde sempre os estudos relacionados a ele carecem de mais estudos e de uma especificação da área.

Anônimo disse...

Bom, acho que os problemas e dilemas enfrentados pela Educação Física são pertinentes a tudo que está começando. É uma profissão relativamente nova, que para conseguir formar uma base sólida e se afirmar no cenário educacional com o devido valor que merece e tem, precisa, a meu ver, deixar de lado alguns padrões, principalmente a respeito do que está pronto e estruturado para outras profissões. Estamos num estágio em que não sabemos ao certo o que é de fato competência da Educação Física. Opiniões sobre "nossa real função" não faltam. Uns sabem muito, outros sabem pouco... uns julgam o que os outros fazem como errado, outros como certo... e nesse vai e vem, acabamos ficando sem rumo certo, sem saber direito para onde ir ou o que fazer... Pessoalmente acredito que nem nosso órgão representativo sabe ao certo. Tudo que é inerente ao movimento humano deveria ser função do profissional de educação física (opinião pessoal), porém uma vez que observo um abismo entre os próprios profissionais (me refiro a opiniões diversas), fica difícil acabar com esses dilemas e se estabelecer como uma profissão sólida, honesta e principalmente confiável...