quarta-feira, 11 de junho de 2008

A aprovação da sociologia e da filosofia no Ensino Médio é doutrinação barata ou Consciência crítica de fato?


Folha de São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2008

NELSON ASCHER

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Como controlamos a lei, nós a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes
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DISCUTÍAMOS DOSTOIÉVSKI . Ocorreu-me mencionar um personagem aparentemente secundário, mas de fato importante, de "Crime e Castigo" cuja trajetória no romance me parecia uma de suas melhores criações ficcionais. Lembrava seu papel, como aparecera na trama, o que fizera, que fim levara. Só que, na hora de dizer-lhe o nome, ele não me vinha à mente. Por nada neste mundo. Ninguém mais o recordava e, para piorar a situação, estávamos todos passando férias (pela última vez na minha vida, juro) num lugar remoto, sem bibliotecas nem telefones.
Forcei a memória, arrolando nomes em ordem alfabética. Nada. Evoquei na imaginação cada episódio relevante do romance e até cenas de um filme russo sobre ele cujos atores tinham os mais adequados "physiques du rôle" possíveis (o sujeito era um russo maciço, corpulento sem ser gordo, de meia-idade e da alta classe média), igualmente sem resultado.
Reconstruí na cabeça os lugares e horas em que li o livro, o que havia ao redor, como me sentia, o que conversei com amigos a respeito. Ainda assim, demorou dois dias para que, de súbito, seu nome me viesse como que por milagre: Svidrigailov.
Li "Crime e Castigo" no verão entre o fim do segundo colegial (segundo ano do segundo grau) e o começo do terceiro. É claro que o escritor russo me marcou profundamente e guardo recordações vívidas de seus livros bem como dos contextos de minhas leituras. Essa era, no entanto, uma época na qual minha memória funcionava bem e as lembranças que ficaram estendem-se não apenas a outras obras, como também a outras áreas.
Eu cursava então um dos melhores colégios de São Paulo. O ano seguinte era o do vestibular e pelo menos metade de minha classe entrou numa das três melhores escolas de medicina, enquanto os demais ingressaram em bons cursos de odontologia, biologia, administração etc. Se isso não depõe necessariamente a favor de nossa inteligência, decerto prova que a escola sabia maximizar nossa capacidade de memorizar as informações necessárias para atingirmos as metas propostas.
Mesmo assim, do grosso do que aprendi lá, não resta nenhum vestígio em meus neurônios. E me refiro não a disciplinas vagas, dependentes de interpretação, mas às rigorosas e/ou factuais: trigonometria e geometria analítica, ótica e química orgânica.
O que aconteceu? Meu cérebro deve tê-las guardado num arquivo provisório. Tão logo sua utilidade terminou, os arquivos, ao contrário daquele que continha "Crime e Castigo" (se bem que com a falha, que tive de reparar, no caso Svidrigailov) , foram "deletados".
Por sorte não estudávamos literatura estrangeira, senão Dostoiévski teria provavelmente tido o mesmo destino. Caso tivéssemos, como se tornou há pouco obrigatório para o ensino médio, cursos de filosofia e sociologia, o que sucederia com suas lições?
Cada qual de nós preserva em si aquilo que o atrai, emociona, interessa. Professores e pais podem nos obrigar a decorarmos tais ou quais informações por razões pragmáticas. Estas, porém, literalmente não "colam", ou seja, não se aderem a nada no interior de nossa consciência ou do nosso subconsciente (se é que isso existe). Respostas que antecedam as perguntas são piores que inúteis, pois elas acabam ocupando um lugar que, tornado ermo, não enseja mais que brotem naturalmente certas indagações.
Para que, num país que mal ensina (e ensina mal) coisas fundamentais como matemática, escrita e leitura, acrescentar essa sobrecarga que, além de inútil e irrelevante, nem as escolas privadas e muito menos as públicas terão condições de ensinar decentemente? Onde é que vão se recrutar bons professores de filosofia e sociologia?
Naturalmente essa disciplinas não serão minimamente bem ensinadas e todo mundo sabe disso. Não há quadros, não há tempo, não há verbas e, sobretudo, não há nem haverá interesse algum por parte das vítimas potenciais, os alunos.
A resposta se torna evidente quando ouvimos autoridades e os interessados confessando, sem querer, seu objetivo real. Eles falam em encorajar a visão ou pensamento crítico. Essa expressão nojenta oculta, ou melhor, revela o ápice da arrogância: nossa maneira de pensar, que chamamos mentirosamente de "crítica", é a certa, a única certa.
Como hoje controlamos a lei, nós a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes, impedindo-os de pensarem por conta própria. Para que perder tempo com tentativa e erro se já temos todas as respostas? Enfim, sociologia e filosofia no ensino médio são apenas eufemismos. Seu nome verdadeiro é doutrinação barata.

3 comentários:

Guilherme Umemura disse...

Como em tudo que é (re)produzido na escola, existem duas vertentes essenciais de compreensão: seu papel teórico, e seu papel como ferramenta social. Não devemos pensar que apenas a sociologia e a filosofia são as matérias que são responsáveis pela formação de opnião dos indvíduos.
Todo o conteúdo que é oferecido na escola, tem um papel útil a sociedade, senão por que razão iria se ensinar?
Porém, sociologia e filosofia, são matérias que têm como "objetivo" formar pessoas com senso crítico e formadoras de opnião. Mas, do jeito que está se propondo, sem uma adaptação e aquisição de meios para as mesmas, apenas está estruturando currículos para "inglês ver", mediocrizando e banalizando a importância e o valor que estas disciplinas têm em sua REAL essência

Anônimo disse...

Ainda hoje, estava assistindo o programa "Salto para o futuro" da TV Brasil, que por sinal traz um conteúdo extremamente inovador e de grande qualidade na televisão brasileira, enfim ao longo do debate que trazia como tema [Cinema, documentário e educação], os componentes da mesa redonda chegaram a conclusão de que seria necessesária a alfebetização crítica da mídia e dos meios de comunicação, a alternativa seria aderir a essa perspectiva na escola, que partindo de uma incorporação da produção audiovisual ao curriculo escolar participaria da formação crítica aos meios de comunicação em massa.
Como fazer isso? criar uma disciplina que apresentaria ao aluno um perspectiva crítica da realidade espetacularizada da mídia?

A reportagem da Folha de São Paulo de Nelson Ascher, provocativa por sinal, traz em uma de suas argumentações ,que se opõe a adesão da filosofia e da sociologia no currículo escolar, “Para que, num país que mal ensina (e ensina mal) coisas fundamentais como matemática, escrita e leitura, acrescentar essa sobrecarga que, além de inútil e irrelevante, nem as escolas privadas e muito menos as públicas terão condições de ensinar decentemente?”. É interessante observar que a filosofia é tida, não só pelos filósofos e docentes da área como também de consenso quase geral, a disciplina mãe a grande geradora do conhecimento atestado pelas intermináveis “coisas fundamentais” da vida. É também importante destacar que a filosofia (e a sociologia) produz o interesse do campo político do poder, que instrumentaliza ou á rejeita de modo impor suas ideologias diante do poder.
No cenário nacional a filosofia deixa de atuar em 71, em pleno regime militar, foi rejeitada e sucatiada ao longo dos anos, em 2001 tenta erguer e novamente é podada do campo escolar. Sem duvida, levantando dados político-histórico, nota-se que ela é alvo de interesses e temores, apresentando como fundamental e indispensável no processo de alfabetização da consciência, exata, humana e biológica do ser.

Anônimo disse...

Concordo com o que o Guilherme diz, acho que não são somente duas disciplinas as responsáveis pela formação do pensamento crítico do aluno...até pq isso a gente aprende com a vida! Pode ser algo para "inglês ver" mas não só por isso deve-se desconsiderar a importância de se ensinar tais matérias nas escolas. Acho que é um tipo de disciplina que necessita uma maior reflexão interior, voltar um pouco pra dentro de sí, ajudando-nos a ter uma visão um pouco diferente dos acontecimentos que nos cercam...e penso que seja exatamente isso que a sociedade atual necessita...pensar com o próprio pensamento, sem se apoiar somente em opiniões externas...pq atualmente mal sabemos o que sentimos (lí uma matéria na revista Veja, certa vez, que dizia que muitas pessoas consultam um psicólogo pra saber o que desejam exartamente, o que antes era algo óbvio).